Bahia, 27 de novembro de 2024 às 01:33 - Escolha o idioma:

Reforma tributária deve acabar com distorções, como o ‘passeio’ de mercadorias pelo país; entenda


Publicado em: 21 de novembro de 2023


Em decorrência da guerra fiscal entre estados, fruto do atual modelo tributário, empresas optam por passar com o produto em localidades que não têm a ver com a entrega. Esta etapa da reforma busca simplificar as cobranças e cortar desperdícios.

 

A reforma tributária, aprovada no Senado, deverá acabar com algumas distorções curiosas do atual sistema de cobranças de impostos do país. Essa é a avaliação de analistas e da equipe do governo que cuida da reforma.

Entre as distorções que devem ser eliminadas estão:

A reforma ainda não virou lei. Como o texto aprovado no Senado teve diferenças com relação ao que passou na Câmara, agora os deputados precisam voltar a analisar a proposta.

Esta etapa da reforma busca simplificar a cobrança dos impostos sobre o consumo. Um dos pontos é a substituição de 5 impostos por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que vai ser dual: ou seja, um IVA federal e um IVA estadual.

A expectativa do governo e de analistas econômicos é que a reforma torne mais eficiente o sistema tributário do Brasil, hoje considerado caótico e causador de desperdícios financeiros.

Distorções que devem acabar

Entenda abaixo algumas das distorções que fazem do modelo tributário do Brasil ineficiente e confuso. Elas devem acabar quando a reforma virar lei:

‘Passeio’ de mercadorias ou notas fiscais pelo país

Uma das distorções mais dispendiosas para a economia é o “passeio” de produtos pelo país, consequência das atuais regras tributárias.

Hoje, o ICMS, um imposto estadual, é cobrado na origem. Ou seja, onde os bens são produzidos.

Isso cria o chamado “crédito presumido” na saída de um produto de um estado para o outro, reduzindo o valor e ser pago em ICMS.

Por esse modelo, algumas empresas conseguem benefícios fiscais só pelo fato de os produtos passarem por determinados estados, mesmo que nenhuma entrega seja feita lá.

O resultado são caminhões circulando desnecessariamente pelas rodovias, desgastando o asfalto e poluindo o meio ambiente, encarecendo o custo total da economia brasileira.

Uma distorção maior ainda é quando as empresas apenas enviam as notas fiscais para obter o benefício fiscal, sem que os produtos sequer circulem pelos estados que concedem os benefícios.

“Para algumas empresas, a mercadoria vai para aquele estado e, de lá, vai para o destino final. Ou nem chega a ir, tem uma nota fiscal de saída daquele estado e daquele estado para outro. São operações triangulares, passa o produto por um determinado estado para ter algum benefício fiscal, que geralmente é um crédito presumido. Por isso chama passeio”, explicou Melina Rocha, ex-consultora do Banco Mundial e especialista em IVA.

Além disso, cada estado pode definir sua alíquota, o que gera uma competição entre eles, a chamada guerra fiscal.

Com a reforma tributária, os impostos passarão a ser cobrados no destino final, onde o bem ou serviço será consumido, após um período de transição, e não mais na origem. Isso contribuiria para combater a chamada guerra fiscal.

Com o fim da guerra fiscal, a produção tende a ficar mais próxima dos locais de consumo com o passar do tempo. Entretanto, alguns bens ainda continuarão a ser feitos em locais mais distantes para manter, por exemplo, a Zona Franca de Manaus (ZFM). O local concentra a produção, por exemplo, de motos, smartphones, TVs, condicionadores de ar e notebooks.

Discussão sobre quais produtos geram créditos

Segundo analistas, este é um dos principais pontos que geram discussões judiciais no atual sistema tributário brasileiro: quais itens produzidos pelas empresas podem gerar créditos para elas.

Os chamados créditos fiscais no sistema tributário brasileiro são concedidos às empresas como forma de incentivo à produção de determinados bens ou serviços.

O setor produtivo tem entrado na Justiça em busca desses ressarcimentos por parte da União e estados, resultando em muitos processos que poderão ser evitados com a adoção dos IVAs federal, estadual e municipal.

Melina Rocha lembra que houve, por exemplo, uma discussão judicial se as lixas, usadas em processos industriais, poderiam obter créditos de PIS e Cofins, reduzindo o valor de tributos pagos pelas empresas, assim como se as sacolas plásticas também poderiam usufruir de créditos tributários.

Com a adoção dos IVAs na reforma tributária, essa discussão não mais existirá. Isso porque, ao contrário do que ocorre hoje, os IVAs serão não cumulativos (impostos não incidirão sobre valores tributários já pagos ao longo da cadeia produtiva).

Assim, as empresas poderão ter créditos de todos os tributos que já incidiram na aquisição de insumos e etapas anteriores da produção, o que descarta a necessidade dos créditos hoje concedidos.

Impostos incluídos na base de cálculo de outros

No sistema atual, impostos são cobrados “por dentro” de outros tributos. Por exemplo, o ICMS estadual incide sobre o próprio ICMS e, também, sobre o PIS/Cofins.

Isso quer dizer que há impostos embutidos nos preços que servem de base para a cobrança outros tributos, o que aumenta o valor total dos bens e serviços e dificulta o cálculo do imposto que está sendo pago.

O secretário especial de reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, explicou que apenas o Brasil, junto com a Bolívia, cobra imposto sobre o preço dos produtos e serviços “por dentro”.

Com a reforma tributária, ficou definido que não haverá mais possibilidade de os tributos incidirem sobre os tributos.

A única exceção será o imposto seletivo, cobrado sobre bebidas alcoólicas, cigarros, armas e extração de petróleo e minerais (para não criar distorções no mercado).

Diferença de tributação entre bens e serviços

Outra distorção apontada por analistas é a diferença na tributação entre bens e serviços, algo que, se forem consideradas apenas as economias com mais representatividade no mundo, só acontece no Brasil.

Aqui, os produtos são tributados com o ICMS estadual, maior que 15%. E os serviços são tributados pelo ISS municipal, com alíquota de até 5%.

A esses impostos se somam, ainda, o PIS e Cofins federais, de 9,25%.

De acordo com a especialista Melina Rocha, essa diferenciação de alíquotas entre bens e serviços gera disputas judiciais por empresas que buscam pagar menos tributos. Isso porque algumas delas alegam que, na verdade, oferecem serviços, em vez de produtos.

Com a reforma tributária, o Congresso Nacional definiu que os impostos sobre valor agregado, tanto do governo quanto dos estados e municípios, incidirão sobre produtos e serviços – sem diferenciação.

Impacto do fim das distorções

Segundo nota técnica de 2020 do economista Bráulio Borges para o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), como a reforma tributária corrige essas distorções, é de se esperar que tenha um impacto positivo sobre a produtividade e o crescimento do Brasil. A expectativa é de que a reforma impulsione o PIB em até 20,2% em 15 anos por conta do aumento da produtividade e dos investimentos.

“Para além dos efeitos diretos, a reforma tributária também poderia resultar em alguns efeitos indiretos, resultantes da redução do risco país e da taxa de juros de longo prazo relacionados à redução da relação dívida pública/PIB num cenário de maior crescimento do PIB potencial”, diz o estudo do economista Bráulio Borges.

Estudo do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper (InsperTax) divulgado em julho deste ano, sob coordenação da economista Vanessa Canado, diz que em 2019, o contencioso tributário (disputas judiciais), distribuído nas esferas administrativa e judicial, equivalia a 75% do Produto Interno Bruto (PIB).

“Em termos globais, concluiu-se que cerca de 95% desse contencioso seria impactado pela reforma dos tributos sobre o consumo, considerando as características gerais da CBS e do IBS: base ampla de incidência, não-cumulatividade plena, alíquota que não distinga setores ou tipos de bens e serviços, restrição à concessão de incentivos fiscais, cobrança unificada e informatizada”, conclui o estudo.

O secretário especial Bernard Appy avaliou a reforma tribtuária, além de reduzir custos e estimular os investimentos estrangeiros, também fecha muitas brechas à sonegação de tributos ao corrigir distorções e simplificar a cobrança de impostos.

“Fecha muitas brechas, [utilizadas na sonegação] não fecha todas. Nenhum sistema tributário no mundo fecha toda sas brechas. Tem países com IVA simples, como a África do sul, que tem um ‘compliance gap’ [lacunas que geram perda de arrecadação] muito baixo. Quanto mais confuso o sistema, maior é a possibilidade de sonegação”, disse Appy.

Com a simplificação que a reforma tributária vai trazer, explicou Melina Rocha, especialista em IVA, também serão reduzidas o número de obrigações acessórias (declarações) que as empresas terão de apresentar.

“Se olhar o IVA, como é apurado em outros países, é muito simples. A declaração de IVA são três, quatro linhas no Canadá. Hoje, com as obrigações acessórias de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS, já são cinco [declarações]. Imagina se a empresa for inscrita nos 27 estados, quanto mais para o ISS [dos municípios]”, disse a consultora Melina Rocha.

Próximos passos

Apesar de a equipe econômica, liderada pelo ministro Fernando Haddad, esperar que o texto seja promulgado integralmente até o fim deste ano, congressistas não descartam “fatiar” a proposta. Isso significa dividir trechos da reforma e promulgar primeiro aqueles sobre os quais haja consenso entre Câmara e Senado.

Depois de promulgada a reforma, alguns pontos ainda precisam ser regulamentados pelo Congresso Nacional, como, por exemplo, análise de cesta básica, ‘cashback’ e a definição de quais produtos e serviços poderão contar com alíquotas reduzidas, ou estarão em regimes diferenciados.

Por Alexandro Martello, g1 — Brasília