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De João Pedro a George Floyd, o racismo que mata


Publicado em: 31 de maio de 2020


Por Rômulo Moreira

No último dia 18, a polícia do Rio de Janeiro matou João Pedro Mattos, quando ele estava dentro de sua casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, divertindo-se com amigos. Ele foi atingido por um projétil de fuzil que o acertou na parte posterior das costas. João Pedro era mais um adolescente negro brasileiro: tinha 14 anos.

Poucos dias depois, 25, na cidade de Minneapolis, no noroeste dos Estados Unidos, a polícia matou George Floyd, asfixiado, e depois de já estar inteiramente dominado por um policial brutamontes. George Floyd era mais um cidadão negro norte-americano: tinha 46 anos.

Poucas horas depois que um vídeo foi divulgado nas redes sociais, mostrando-se a brutalidade e a covardia da polícia norte-americana, o prefeito de Minneapolis, Jacob Frey (um “muito fraco prefeito da esquerda radical”, segundo Trump), afirmou em uma entrevista que “ser negro nos Estados Unidos não deveria ser uma sentença de morte.”

E não deveria mesmo sê-lo, nem aqui, nem lá, nem alhures.

Aqui, o governador do Rio de Janeiro não disse nada de relevante sobre a morte de João Pedro, preferindo (da maneira mais simplista possível) transferir a responsabilidade para a Polícia Federal que, efetivamente, co-participara da operação assassina em São Gonçalo. A Polícia Federal, por sua vez, informou que a corregedoria havia instaurado uma sindicância para apurar a atuação dos policiais federais que participaram da operação homicida, que estava acompanhando o inquérito policial instaurado pela polícia civil do Rio de Janeiro, que prestaria todas as informações, que apoiava a elucidação dos fatos, etc., etc., etc.

Nos Estados Unidos, os policiais que participaram da morte de George Floyd foram defenestrados imediatamente do serviço público, e um deles já está preso, acusado de homicídio culposo.

Aqui, os policiais civis e federais que atuaram na operação que resultou na morte de João Pedro não foram suspensos, e continuam trabalhando na atividade policial, como se nada de mais houvesse acontecido naquela casa de São Gonçalo.

Nos Estados Unidos, a violência contra a população negra, como se sabe há séculos, desde a escravização, é um sinal bastante claro do racismo que permeia perversamente a sociedade americana, desde a sua formação, de origem europeia e puritana.

O assassinato de João Pedro sucede uma série de outras mortes que atingem a população negra e jovem brasileira, e antecede, certamente, outras tantas que estão por vir, desgraçadamente. Os números que comprovam esta afirmação e esta prognose são facilmente acessíveis em qualquer pesquisa que seja feita seriamente no país.

No Brasil – antes e depois da escravização a que foram sujeitados homens, mulheres e crianças (a maioria sequestrada do continente africano) – o massacre do povo negro sempre foi uma realidade com a qual se conviveu, e se habitua ainda hoje, numa odiosa e farasaica complacência da elite brasileira, que se alvoroça toda em uníssono quando um dos seus é morto, e se compraz covardemente quando um dos outros é a vítima.

Portanto, o assassínio de João Pedro, e isso é de uma obviedade inquietante, não inaugura, antes pelo contrário, segue uma quantidade absurda de iniquidades que ao longo da história do Brasil atinge esta gente riquíssima, dentre outras coisas, por sua capacidade incrível de resistênciae sua extraordinária inteligência e abundância cultural, nada obstante se saber “que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio.”

Por que, então, tratando-se do mesmo massacre, os norte-americanos, nada obstante a pandemia, foram (e vão sempre) às ruas para protestar contra a violência policial/racial, enquanto no Brasil não há carreatas, manifestações populares, protestos, tampouco providências mais enérgicas contra as reiteradas agressões do Estado brasileiro à juventude negra?

Se o racismo que há na sociedade estadunidense quando, extrapolando o inconsciente coletivo, segrega e mata, causa uma revolta de uma tal maneira contundente – como a que se vê nestes dias que sucedem o assassinato do cidadão negro norte-americano – por qual razão aqui não saímos às ruas, protestando firmemente, e de maneira legítima, contra os abusos que são praticados cotidianamente pela polícia brasileira contra a população negra?

E os nossos juristas, o que dizem? E o nosso governo, o que faz? E a nossa Justiça, como age? E a nossa Academia, o que ensina? E a nossa família, como educa? E a nossa Igreja, o que prega? E a riqueza brasileira, como é usada?

Abstraindo-se a ideia de que sejamos um povo naturalmente pacífico, a mim resta-me entender que esta conivente apatia integra um lado sombrio que permeia a nossa sociedade, que aceita esta normalização de uma violência específica e reiterada, como se fosse algo necessário para uma efetiva política pública de segurança, ou uma decorrência inevitável da pobreza que também assola a população negra no Brasil, desde sempre alijada da riqueza aqui produzida.

Como escreveu Darcy Ribeiro, “a distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre os negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.”

A morte de João Pedro – mais uma dentre milhares de outras que ocorreram e estão ainda para acontecer – deveria levar a população às ruas, protestando enérgica e civilmente, tal como sempre ocorreu, e acontece agora também, nos Estados Unidos, com todos os riscos que o novo coronavírus representa para as aglomerações.

É preciso entender que, “face ao racismo, não há compromisso possível. Não há tolerância possível. Só há uma resposta: a tolerância zero. Esta resposta pode parecer radical, mas é a única resposta concebível se quisermos adotar, em relação a este problema, uma atitude coerente e eficaz.”

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS