Publicado em: 22 de abril de 2022
Bolsonaro concede perdão a Daniel Silveira e provoca crise com STF
Juristas, advogados, professores e especialistas em direito afirmaram que é passível de questionamento e deverá ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal o decreto anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira (21) para favorecer o deputado aliado Daniel Silveira (PTB-RJ). A maioria apontou “inconstitucionalidade” ou “ilegalidade” do ato do presidente.
Em transmissão por rede social, Bolsonaro anunciou a concessão de perdão da pena a Silveira, condenado na véspera pelo Supremo Tribunal Federal por dez votos a um. Por estímulo a atos antidemocráticos e ataques a ministros do tribunal e a instituições, o STF condenou Silveira a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado, além de perda do mandato e dos direitos políticos e multa de cerca de R$ 200 mil.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) informou em nota que o presidente Beto Simonetti solicitou à Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da entidade uma análise do urgente do caso para orientar eventual ação judicial.
“Assim que estiver concluído, o parecer da Comissão será submetido, imediatamente, para deliberação do plenário da OAB, órgão máximo de deliberação da instituição, em sessão extraordinária”, afirmou Simonetti. Segundo ele, “o descumprimento de decisões judiciais é extremamente preocupante para a estabilidade do Estado de Direito. O diálogo institucional e o respeito ao princípio da separação entre os Poderes devem orientar o enfrentamento de desafios como o que se apresenta”.
Para Breno Melaragno, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) (vídeo abaixo), o decreto “aparentemente” cumpre a exigência constitucional.
“Não vou dizer que é inédito, mas é algo muito raro no Brasil. Ele equivale ao instituto da clemência, que existem em alguns outros países, sendo atribuição ao chefe de estado, e esse questionamento pode haver perante o Supremo Tribunal Federal principalmente em relação ao eventual desvio de função”, declarou.
Na avaliação dele, o Supremo deverá analisar o decreto se provocado, mas, afirmou, nada impede uma decisão por iniciativa própria.
“Nada impede uma decisão que a gente chama de ofício, mas eu penso que, diante de um caso desses, um decreto de graça, de perdão individual, eu acho, a princípio um pouco difícil o Supremo agir de ofício. Acho que ele vai acabar sendo provocado para decidir se pronunciar em relação a isso”, afirmou.
Vidal Serrano Nunes Júnior, professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), disse que a chamada “graça individual” costuma ser concedida para fins humanitários, em uma situação específica que justifique.
“Não havendo fundamentação adequada, ele pode, sim, ser questionado. Então, eu acho que esse indulto individual, na medida em que se pretende a inovação de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, ele pode, sim, ser entendido como um ato administrativo executado com desvio de finalidade e, com isso, eventualmente, se expor eventualmente no próprio Supremo Tribunal Federal”, afirmou.
Segundo Conrado Gontijo, advogado criminalista e doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), a medida tomada por Bolsonaro é “flagrantemente inconstitucional”.
“Trata-se de grave afronta ao Supremo Tribunal Federal, que, com absoluto acerto técnico, condenou Daniel Silveira pela prática de crimes graves. Ainda que o presidente da República tenha a prerrogativa de conceder graça, não pode fazê-lo de forma abusiva, deturpando a lógica que justificou a criação desse instituto. E, no caso concreto, o que se nota é Jair Bolsonaro, mais uma vez, atacando as instituições, atacando a democracia e tomando uma decisão manifestamente incompatível com o Estado de Direito”, afirmou.
Além disso, segundo ele, não houve o chamado trânsito em julgado (etapa do processo em que não há mais possibilidade de recurso e a sentença se torna definitiva), que, afirmou, é condição para a concessão da graça.
“Essa é, na minha visão, uma ilegalidade do decreto. A graça só pode ser concedida para pessoas condenadas em processos com trânsito em julgado. No caso específico, o acórdão sequer foi publicado e ainda cabe recurso por parte da defesa. Por isso, entendo que, também em razão dessa questão formal, a graça não poderia ter sido concedida e, por isso, o decreto é ilegal”, declarou.
Pedro Henrique Demercian, professor de direito processual penal da PUC-SP, classificou o decreto como “uma verdadeira excrescência no direito brasileiro”.
“A concessão desse indulto individual pelo presidente da República me parece ter incorrido em evidente vício de origem e desvio de finalidade. No caso específico, autoria, materialidade e culpabilidade foram amplamente debatidos no STF, com estrita observância do devido processo legal (justo processo). A pena foi fixada dentro de parâmetros adequados e razoáveis”, disse.
“A concessão da graça (ou indulto individual), nesse contexto, traduz uma verdadeira afronta à própria independência e autonomia do Poder Judiciário”, complementou.
Além disso, declarou, a motivação do decreto de graça vincula sua concessão. “Como a fundamentação está viciada na origem, já que não se evidenciou no caso concreto — segundo me parece — violação ao direito de crítica ou opinião ou a alegada comoção social, penso que esse decreto é nulo e ineficaz para os fins a que se destina, ou seja, a extinção da execução da pena imposta”, disse Demercian.
O professor de direito constitucional Gustavo Sampaio, da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirmou que o comportamento de Bolsonaro ao editar o decreto é “estritamente político”.
“Não é um comportamento jurídico. Isso pode render problemas porque, como ato do presidente, se corporifica através de um decreto. Muito provavelmente, esse decreto vai ser levado à apreciação plenária do Supremo Tribunal Federal no crivo do controle de constitucionalidade, e o presidente vai ter mais um argumento para dizer que o Supremo Tribunal Federal ‘está me desautorizando em todos os meus atos’ — o que não será verdade, mas será uma ferramenta importante na sua retórica política no ano de eleição, em que o chefe de estado pretende ser reeleito presidente da República”, declarou.
Para o advogado Cláudio Pereira de Souza Neto, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), certamente o decreto será submetido a apreciação do Supremo Tribunal Federal.
“Não se trata de um indulto coletivo. trata-se de um indulto individual, também chamado de graça, mas não vejo razão para que o Supremo Tribunal Federal se distancie desse parâmetro estabelecido na sua jurisprudência”.
Segundo ele, Daniel Silveira tem atuado de maneira reiterada contra a democracia, contra a autonomia das instituições. “Isso é fortemente reprovado pela Constituição Federal de 1988, que é a constituição da democracia”, declarou.
“Portanto, eu entendo que neste caso é bem possível que o Supremo Tribunal Federal reveja o decreto de indulto e considere incompatível com a Constituição Federal, como uma forma de atuar no sentido da preservação da democracia brasileira, dissuadindo outros parlamentares, outros políticos, de atacarem as nossas instituições”, disse.
Ademar Borges, advogado e professor de direito constitucional do Instituto de Direito Público, vislumbra um “constitucionalismo abusivo” na decisão de Bolsonaro.
“O que se quer expressar com essa ideia? É que os mecanismos, os instrumentos da Constituição eles podem acabar sendo utilizados ou mobilizados para finalidades que são inconstitucionais ou antidemocráticas”, afirmou.
De acordo com o professor, o decreto usado para beneficiar Silveira pode ser usado para “neutralizar os mecanismos de autodefesa da democracia”.
“Essa graça é contrária à Constituição porque neutraliza ou impede que o Poder Judiciário se defenda e, com isso, defenda a própria existência da democracia, que depende de um Poder Judiciário independente para existir.”
Para André Perecmanis, professor de direito da execução penal e processo penal da PUC/RJ (vídeo abaixo), o Supremo já tem entendimento consolidado de que é possível controlar a legalidade do decreto que concede indulto coletivo ou indulto individual, como a graça.
“O indulto, seja o indulto coletivo, seja o indulto individual, é um ato político, previsto na lei, e que está, em princípio, sujeito à discricionariedade do presidente da República. Ele tem liberdade para conceder. Só que, como todo ato administrativo, tem que submeter a determinados requisitos — impessoalidade, moralidade, conveniência, oportunidade. São esses requisitos que podem estar sendo feridos por esse decreto, principalmente, quando a gente analisa os ‘considerandos’ do decreto”, afirmou.
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Doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP) e advogado especialista em direito eleitoral, Fernando Neisser, afirmou que Bolsonaro agiu ilegalmente ao conceder a “graça” a Daniel Silveira.
“Ainda que o mérito da concessão de indulto ou graça não seja passível de controle judicial, sua motivação, como a de qualquer ato administrativo, vincula sua validade. E Bolsonaro não sustentou a graça na liberalidade presidencial de beneficiar um aliado, mas afirmou que a interpretação dada à Constituição pelo STF está errada. Disse, expressamente, que, em sua visão, a imunidade parlamentar abrange os fatos dos quais Daniel Silveira foi acusado. E a motivação torna ilegal o decreto, pois a Presidência da República não é instância revisora da interpretação constitucional do STF que, como se sabe, dá a última palavra”, declarou Neisser.
Segundo Vera Chemim, advogada constitucionalista com mestrado em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo, o decreto de Bolsonaro está previsto no artigo 84 da Constituição Federal, inciso XII, e dá “competência privativa” ao presidente para conceder o indulto.
Para ela, a questão envolve uma “forte polarização político-ideológica entre a direita e a esquerda” porque, afirmou, o presidente considera que é alvo de perseguição política do STF e que o julgamento foi parcial.
“Mas, realmente, essa questão do desvio de finalidade é difícil de responder, pois nós teríamos realmente que ter uma comprovação disso tudo. É, claro, que, em uma primeira análise, diante do que eu acabei de colocar, é sim, possível que a intenção tenha sido essa”.
Por G1