Publicado em: 3 de setembro de 2018
Uma queda de 8% na quarta e de 13% na quinta. Em dois dias, o peso argentino acumulou uma desvalorização histórica frente ao dólar. A turbulência financeira da Argentina gerou uma corrida às casas de câmbio para comprar dólares, fez com que o país firmasse acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) para adiantar o repasse de um pacote de ajuda e virou assunto nos jornais dentro e fora do país.
Em quase três anos de mandato, essa é uma das mais graves crises enfrentadas pelo presidente Mauricio Macri, cujo gabinete anunciou nesta semana duas medidas para conter a desvalorização: vender US$ 330 milhões no mercado de valores e subir a taxa de juros a 60%, a mais alta do mundo.
Ainda assim, o cenário no curto prazo não é promissor. A previsão é de mais inflação, mais incertezas, mais complicações, principalmente para quem depende de crédito ou de importações. A depreciação acelerada da moeda argentina – que já completa 50% em um ano – está associada ao contexto internacional adverso, a erros de Macri e a problemas históricos da economia da Argentina, segundo a avaliação de analistas.
Além disso, a Argentina é um dos principais parceiros comerciais do Brasil e importante comprador, principalmente, de veículos fabricados em território brasileiro. Atrás de China e dos EUA, a Argentina é o terceiro maior importador de produtos brasileiros. E, apesar do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em 0,2% anunciado nesta sexta no Brasil, o indicador foi pressionado por forte queda da indústria e dos investimentos no segundo segundo trimestre de 2018, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitica).
A desvalorização do peso argentino vem ocorrendo desde dezembro, mas, na quarta-feira, a moeda foi à lona depois de um anúncio do presidente. Macri tentava gerar confiança no mercado. O efeito, no entanto, foi o oposto e as palavras do presidente atraíram ainda mais incertezas.
O episódio entrou para a lista do que alguns chamam de erro da equipe econômica que se autodenominou “a melhor em 50 anos”.
Muitos analistas dizem que falta ao governo explicar se vai continuar com o histórico déficit fiscal (despesas maiores que receitas) de um dos países mais assistencialistas da América Latina. Se continuar tentando por fim ao desequilíbrio entre o que arrecada e o que gasta de forma gradual, a Argentina corre risco de sofrer ainda mais com a já elevada inflação. Se preferir reduzir o déficit de pronto, com corte nas despesas, vai dar um duro golpe nos milhões de argentinos que dependem do Estado.
A decisão não é simples, em especial porque Macri e sua coalizão tentarão a reeleição dentro de um ano.
Mas essa ambiguidade em relação à forma como vai encarar a crise, asseguram especialistas, funciona como repelente para investidores.
Macri, empresário e engenheiro, quis resolver a inflação e o déficit herdados de governos passados usando a receita que previa equilibrar contas, emitir dívida e transformar a Argentina em um destino para o turismo financeiro.
E o fez optando pelo ajuste de gastos gradual, o chamado gradualismo econômico, ao invés de apostar em medidas que gerassem, num primeiro momento, “sangue, suor e lágrimas” para reduzir as despesas.
Em maio, quando o mundo assistiu à primeira queda forte do peso em sua gestão, Macri percebeu que os investidores rejeitavam o gradualismo. E, à medida que a incerteza sobre a direção da economia do país aumentava, a Argentina assistiu à fuga de capitais e Macri, aparentemente, ficou sem respostas sobre quais medidas tomar.
O erro mais grave de Macri, dizem analistas e até integrantes do próprio partido do presidente, foi fazer uma leitura equivocada do contexto internacional. Num momento de protecionismo extremo, Macri decidiu que a Argentina “voltaria ao mundo”.
Ao insistir na dependência do financiamento de mercados internacionais, a já histórica vulnerabilidade da economia argentina foi exacerbada. E quando os Estados Unidos elevaram suas taxas de juros, o peso despencou. Quando Donald Trump anunciou novas tarifas sobre o alumínio, o peso caiu. Quando a Turquia entrou em crise, o peso também desvalorizou. E assim tem sido.
Nenhuma outra moeda de mercado emergente sofre tanto quanto a argentina quando há qualquer movimento gerando tensão financeira e política em nível global. Enquanto o governo diz “o mundo não nos acompanhou”, os mais críticos falam em erro de cálculo em relação às variáveis externas.
O fato de Macri ser um dos empresários mais ricos da Argentina e de ter sido eleito especialmente para resolver a situação econômica do país dá à crise contornos ainda mais dramáticos.
Ele herdou um Estado com elevado déficit fiscal e inflação, à beira da recessão. As causas, segundo ele, seriam a agenda protecionista de controle de câmbio e a forte emissão de dinheiro para impulsionar o consumo imposta pela administração Kirchner.
Mas, no momento, os indicadores macroeconômicos seguem no vermelho ou estão piores que no passado. O governo Macri afirma ser o custo de “deixar de mentir” e de “abandonar o populismo”.
Os mais críticos a Macri, no entanto, dizem que o presidente não soube captar a realidade argentina, o que implica lidar com um histórico de gasto público elevado.
Além dos golpes de Estado e de governos militares autoritários, a Argentina, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, tem lutado nos últimos 50 anos para definir que tipo de modelo econômico quer implementar.
Como a situação argentina afeta o Brasil e outros países?
O contexto internacional que impacta a Argentina também tem afetado, ainda que em menor escala, outros países da região. Mas a grande questão é saber o tamanho do impacto da desvalorização do peso argentino em outros países.
Certamente, o número de turistas argentinos no exterior vai cair. A expectativa é de que não haverá mais filas de argentinos em lojas de eletrodomésticos chilenas e paraguaias, ou grande fluxo de argentinos em praias brasileiras, por exemplo.
Além de menos turistas, o Brasil pode ver uma redução também nas transações comerciais com a Argentina, em especial nas relacionadas à indústria automotiva. No ano passado, o vizinho foi o terceiro principal importador do Brasil e aumentou em 31,3% as suas compras – as aquisições de automóveis e veículos de carga puxaram as vendas brasileiras.
O lado positivo da crise, no entanto, para o Brasil e países da região, pode ser uma redistribuição de investidores que estavam apostando na Argentina. Crises anteriores mostraram que, quando a Argentina entra em dificuldade, países como o Paraguai e a Bolívia experimentam uma pequena injeção de investimentos.
Para isso, contudo, é preciso exibir a capacidade uma economia mais previsível e menos vulnerável, na avaliação de especialistas.
Apesar de a inflação brasileira estar controlada, a recente disparada do dólar em relação ao real tem potencial para gerar pressões inflacionárias no Brasil. Com o dólar alto, insumos, produtos e serviços ficam mais caros e essa diferença pode ser repassada ao consumidor.
No entanto, num cenário de baixo crescimento econômico e com o desemprego alto, como é o caso do Brasil, o repasse da alta do dólar para a inflação tende a ser pequeno. Além disso, a parcela em dólar da dívida brasileira é marginal, o país tem um volume expressivo de reservas internacionais e déficit relativamente pequeno em transações correntes (que contabiliza as trocas com o exterior) – ainda que, em julho, as transações correntes tenham sido deficitárias em US$ 4,4 bilhões, após quatro meses de superávits, segundo o BC.
Tudo isso minimiza a vulnerabilidade do Brasil em relação aos efeitos adversos atrelados ao cenário externo mais turbulento e também às incertezas sobre o cenário eleitoral, fazendo com que as chances de o país viver uma crise como a da Argentina sejam muito pequenas.
Daniel PardoDa BBC News Mundo, na Argentina