Por: Foto: Isac Nóbrega/Palácio do Planalto Publicado em: 19 de janeiro de 2021
Após uma semana caótica e marcada pela tragédia, em que pacientes de Manaus sufocaram até a morte, por falta de oxigênio hospitalar, diante de equipes médicas atônitas, impotentes e revoltadas com a ingerência governamental que levou o estado ao maior colapso sanitário desde o início da pandemia no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, neste domingo (17), o uso emergencial de dois imunizantes contra a Covid-19.
Fundamentado no argumento, unânime, de que não há tratamento precoce para o mal causado pelo novo coronavírus, o que não apenas desautoriza, mas também desmonta o argumento do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que seguem, sem qualquer base científica, recomendando o uso de fármacos como a hidroxicloroquina, medicamento já banido dos protocolos de tratamento da doença, em todo o mundo, o órgão decidiu liberar a CoronaVac, da chinesa Sinovac em parceria com o Butantan, e a vacina da AstraZeneca, elaborada com a colaboração da Universidade de Oxford.
No entanto, o que se viu suceder ao fato, especialmente após o governo de São Paulo dar início, quase imediato, à vacinação, no território nacional, nada teve a ver com mensagens de esperança a um povo que ainda não conseguiu se refazer do susto provocado pelo colapso amazonense e que ainda se vê desamparado pela falta de uma estrutura hospitalar que dê conta da velocidade do contágio. O que se viu suceder a isso coloca o país sob os holofotes da vergonha.
Farpas, ameaças e acusações, trocadas entre a Presidência da República e o Governo de São Paulo, politizam uma questão que deveria ter, apenas, um lado: o da população, cada vez mais vulnerável às consequências de uma doença ainda desconhecida, com alto potencial letal e com sequelas que podem incapacitar, não se sabe, ainda, por quanto tempo.
De um lado da arena, o governador João Doria, que protagonizou momentos vexatórios de pressão sobre o Butantan, por obter primazia política, na vacinação, sobre o Governo Federal, seu opositor declarado; do outro, Jair Bolsonaro, um presidente inconsequente e obscurantista, que rejeita a ciência; nega a doença, desde seu início; não incentiva a vacinação; e desdenha do cenário pavoroso que as mais de 200 mil mortes impõem ao país, apoiado por Eduardo Pazuelllo, militar investido no cargo de ministro, sem qualificação na área da Saúde, visivelmente inexperiente, perdido no meio do caos e subserviente às ordens do chefe.
POLITICAGEM – Cenário armado, o que vimos brotar dele foram declarações tão desastrosas que fizeram até mesmo o vice-presidente, Hamilton Mourão, outra fonte não muito hábil de asseverações, embora um pouco mais comedida, classificá-las, pejorativamente. “Ah, isso aí eu não vou entrar nesse detalhe. Isso aí tudo é politicagem. Eu não entro na politicagem. O meu caso aqui, você sabe que eu lido com as coisas de forma objetiva. Isso aí eu deixo de lado”, disse o vice.
A guerra particular de Bolsonaro e Doria, levou Pazuello a contestar, ontem, após a decisão da Anvisa, em cadeia nacional, a primeira vacina aplicada no Brasil, na enfermeira Mônica Calazans, que atua na linha de frente do Hospital Emílio Ribas, na capital paulista. Nesse campo de batalha político, não importou se essa primeira dose alimentou a esperança de todo um povo amortizado e massacrado pelo medo e pelo caos econômico provocado pela pandemia. O que se sobressaiu foi o desejo de ferir o adversário e diminuir um ato que não se conseguiu colocar em prática primeiro.
Sem citar diretamente o governador João Doria e visivelmente irritado, Pazuello classificou a aplicação da primeira dose da CoronaVac, vacina, inicialmente, desprestigiada pelo presidente, por ter sido desenvolvida pela China, como uma mera jogada mercadológica. Também disse que não se pode admitir nada contra a união do povo brasileiro. “Poderíamos num ato simbólico ou numa jogada de marketing iniciar a primeira dose em uma pessoa, mas em respeito a todos os governadores, prefeitos e os brasileiros, o Ministério não fará isso”, desdenhou o ministro.
Segundo Pazuello, “o Brasil imunizado é uma só nação”. O ministro fez questão de reforçar a exclusividade do Ministério da Saúde, do Sistema Único da Saúde (SUS) e do Plano Nacional de Imunização (PNI) sobre as doses da vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan. “Todas estão contratadas de forma integral e exclusiva pelo o Ministério da Saúde e para o PNI, todas, inclusive essa que foi aplicada agora. Isso é uma questão jurídica. Não vou responder agora, porque a Justiça que tem que definir”, advertiu.
A afirmação de Pazuello tenta colocar o Estado de São Paulo “em desacordo com a lei”. Reforçando que o Plano de Imunização tem que ser executado pelo Ministério da Saúde, o ministro insinuou que o ato de João Doria foi ilegal. Segundo o Uol, isso se deve ao fato de haver um contrato de aquisição de 100% dos lotes da CoronaVac pelo Ministério da Saúde. No documento, segundo os argumentos do ministro, há uma cláusula de exclusividade.
A fala de Pazuello, entretanto, merece uma ressalva: o Governo Federal requisitou as doses da CoronaVac apenas recentemente, no dia 7 de janeiro, três dias depois de o Governo Federal receber a primeira negativa da Índia acerca da entrega das doses do imunizante da AstraZeneca produzidas no seu território.
O segundo veto do país asiático foi dado na última sexta-feira (15), quando a operação empreendida pelo governo brasileiro para buscar as doses do imunizante, em Mumbai, resultou em um fiasco diplomático, já que ficou evidente que não havia acordo fechado garantindo a entrega imediata.
Ignorando os avisos do governo indiano, dando conta de que só poderia atender a demanda dentro de alguns meses, após imunizar os grupos de risco de sua própria população, o que começou a ser feito no último sábado (16), o Brasil contratou e adesivou um avião da Azul para cumprir a missão. A aeronave permaneceu dois dias parada, no Aeroporto dos Guararapes, em Recife, esperando por uma viagem que não aconteceria, porque não havia carga a ser trazida.
RESPOSTA – A acusação de Pazuello não foi bem aceita pelo governador de São Paulo. João Doria rebateu duramente as declarações do ministro. Durante coletiva de imprensa, concedida no Hospital das Clínicas, na capital paulista, o governador pediu humildade ao Governo Federal, nas pessoas do próprio Pazuello e do presidente Jair Bolsonaro. “Eu estou atônito com as declarações do ministro da Saúde do Brasil. É inacreditável, como ministro do estado da Saúde, sem o menor zelo com a Saúde, sem ser médico, sem ter conhecimento nenhum da Saúde, sem planejamento, um desastre completo na saúde, ainda mentir. A vacina do Butantan só está em São Paulo e no Brasil porque foi investimento do Governo do Estado de São Paulo, ministro. Não há um centavo até agora, até agora, do Governo Federal, para a vacina, nem para o estudo, nem para a compra, nem para a pesquisa. Nada. Chega de mentira, ministro. Trabalhe pela saúde do seu povo, seja honesto”, contrapôs o gestor, afirmando, ainda, que “a aprovação da CoronaVac é uma vitória da ciência”.
O próprio presidente Jair Bolsonaro contribuiu para acirrar ainda mais o desgaste. Visivelmente descontente, o chefe do Executivo nacional, em ato falho, disparou, diante das câmeras: “apesar da vacina”. Mas corrigiu a afirmação, em seguida: “apesar não, né? A Anvisa aprovou, não tem que discutir mais. Agora, havendo disponibilidade no mercado, a gente vai comprar e vai atrás de contratos que fizemos, que era para ter chegado a vacina aqui. Então, tá liberado a aplicação no Brasil e a vacina é do Brasil, não é de nenhum governador não, é do Brasil”, reiterou.
PAZUELLO EM XEQUE –De acordo com a colunista Carla Araújo, do Uol, o entorno do presidente avalia as consequências do embate para o governo e para a manutenção do general Eduardo Pazuello no cargo. Ela salienta que há uma crescente pressão para que o titular do Ministério da Saúde deixe a pasta, mas observa que Bolsonaro já se mostrou disposto a mantê-lo no governo. “Auxiliares do presidente admitem que houve uma derrota na ‘briga da vacina’ com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que deu ao Brasil as primeiras imagens de brasileiros imunizados contra o coronavírus”, destacou.
Ministros ouvidos pela jornalista afirmam, no entanto, que o presidente já estaria preparado para o que classificou como “postura antipatriótica” de Doria. Ela disse que foi com esse argumento que o governo angariou o apoio de outros governadores contra o gestor paulista, o que culminou no evento realizado em Guarulhos, nesta segunda-feira (18), para dar início à vacinação em outros estados. E salientou que até mesmo a postura da Anvisa, de autorizar a aplicação de vacinas, já estava, ainda que a contragosto, nas contas de Bolsonaro.
Carla Araújo destacou ainda que auxiliares do presidente reconheceram que ele não seria o melhor “garoto-propaganda” da vacina, já que sempre se mostrou desconfiado, contribuindo para ampliar as suspeitas sobre a segurança dos imunizantes, principalmente da CoronaVac, classificada, pejorativamente, por Bolsonaro, como “vacina do Doria” e “vacina chinesa”.
Segundo a colunista, a pressão pela saída de Pazuello começou a ganhar força na semana passada, com o agravamento da crise em Manaus e a recusa da Índia em entregar as 2 milhões de doses da vacina de Oxford, encomendadas pela Fiocruz. Na sexta-feira à noite (15), em uma reunião no Palácio da Alvorada, o presidente se mostrou incomodado por estar sendo culpado pela falta de oxigênio na capital amazonense e pelas relações diplomáticas à beira do fracasso. No entanto, diz ela, apesar de todo esse desgaste, Bolsonaro reiterou seu apoio ao ministro da Saúde e, segundo auxiliares diretos, não mostrou disposição a ceder a pressões, colocando-se a favor da manutenção do general à frente do Ministério da Saúde.